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20170402

Observador Internacional: Resultante da Observação de Julgamento no Tribunal Distrital de Dili Referente à Decisão de Primeira Instância

TIMOR LESTE  Observador internacional
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RELATÓRIO
resultante da observação de julgamento no Tribunal Distrital de Dili
referente à decisão de primeira instância
Out. 2015 - Dez. 2016

Alberto Costa
Fevereiro 2017

I - Enquadramento

Emília Pires e Madalena Hanjam, respectivamente ex-ministra das Finanças (2007- 2015) e ex-vice-ministra da Saúde (2007-2012) do Governo da República Democrática de Timor Leste, foram submetidas a julgamento no Tribunal Distrital de Dili (Tribunal).

As audiências estenderam-se de Outubro de 2015 a Dezembro de 2016, com condução em tétum (sendo assegurada tradução simultânea tétum/ português e inglês quando necessário), tendo a decisão sido proferida em 20 de Dezembro de 2016 e facultada em língua portuguesa (págs 1-100). O acórdão é subscrito pelos juízes José Maria de Araújo (Presidente), Francisca Cabral e Maria Solana Fernandes, que constituíram o colectivo.

A decisão proferida encontra-se nesta altura sob recurso, pelo que não estamos ainda perante a última palavra do sistema de justiça timorense sobre o caso. Trata- se de um passo, muito relevante embora, em direcção à decisão final, verificando- se, entretanto, que a condenação ditada adquiriu imediata projecção, à escala nacional e internacional, em particular no mundo lusófono, com o processo a ser repetidamente apresentado como “o mais mediático da história judicial timorense”. Qualquer que seja a evolução subsequente - e usando a fórmula sugestiva do bastonário da Ordem dos Advogados dum país de língua portuguesa - “durante mil anos vai estar no Google” que as duas ex-governantes de Timor Leste foram condenadas, por participação económica em negócio, a sete e a quatro anos de prisão efectiva.

Esta simples circunstância, entre outras, bastaria para justificar, desde já, a elaboração desta versão do presente relatório, comportando uma apreciação da fase agora cumprida, num processo iniciado há quatro anos atrás.

Trata-se de uma avaliação de observador externo, possibilitada por um acompanhamento continuado das sessões do julgamento, e que é conduzida em plano diferenciado e independente da lógica, das motivações e condicionamentos que são próprios dos diferentes actores processuais - Ministério Público , defesas e tribunais de diferente nível envolvidos.

Esta autonomia de perspectiva torna oportuno que já no presente momento do processo em causa - para lá duma apreciação crítica conduzida sob uma óptica de observação externa - se conclua, também, por um conjunto de recomendações, formuladas à luz de elementos, exigências e princípios internacionalmente reconhecidos, visando o desenvolvimento da ordem jurídica timorense, em pontos que são directamente sugeridos e justificados pelas vicissitudes, limitações e problemas revelados no presente caso.

II - Factores de clarificação decorrentes da decisão de 1ª instância

Do ponto de vista mediático, e também comunitário, a pesada condenação das ex- governantes anunciada em 20 de Dezembro de 2016 é o facto que parece à cabeça sobrepor-se, reduzindo tudo o mais a detalhes técnicos, apenas significativos para os juristas intervenientes no processo.

A notícia duma condenação de ex-governantes propaga-se à velocidade da luz e a tendência, hoje globalizada, é que se reaja como se a decisão fosse final e a culpabilidade dos visados estivesse definitivamente estabelecida. Opera uma espécie de identificação implícita com “o ponto de vista dos juízes que condenam” - ainda que pouco ou nada saibamos à cerca deles1 e da qualidade das suas decisões.

Enquanto o sistema de justiça timorense não profere a sua última palavra, em tempo que não pode prever-se com segurança, uma análise crítica permitirá pôr em relevo, desde já, vários aspectos que contribuem para colocar em perspectiva, e valorar de forma adequada a decisão de primeira instância agora conhecida.

Devem ser objecto de realce, em primeiro lugar, algumas evoluções e clarificações de inegável significado – e que ao próprio Tribunal se impuseram, levando-o a dissociar-se de pontos importantes da acusação – e que acarretarão consequências inevitáveis no âmbito do processo ainda pendente contra as ex-governantes.

Como resultado desta primeira submissão à apreciação de juízes2 - há que sublinhá- lo liminarmente - uma parte significativa das alegações, imputações e suspeições que tinham sido avançadas pelo Ministério Público, e que alcançaram extensa repercussão pública, encontram-se postas em causa.

Receberam, desde já, uma pública desautorização pela mão de juízes - o que não pode ser ofuscado pela opção condenatória da primeira instância.

Destacam-se, à partida, os seguintes pontos:

a) Absolvição das duas ex-governantes da prática do crime de administração danosa

As ex-governantes eram acusadas pelo Ministério Público da prática (em concurso real com um outro) de um crime de “administração danosa”.
É este um tipo de crime - cuja origem remota se encontra no Código Penal da ex- República Democrática Alemã3 - para o qual a lei timorense prevê pena de prisão de 2 a 6 anos quando estejam em causa interesses do Estado.

Nos termos previstos no artigo 274º do Código Penal de Timor Leste (CP), n. 1 e 2, pratica o crime de “administração danosa” quem estiver encarregado de dispor ou de administrar tais interesses “e por ter infringido intencionalmente as regras de controlo e de gestão ou por ter actuado com grave violação dos deveres inerentes à função, causar dano patrimonial economicamente significativo”.

O Tribunal absolveu as ex-governantes deste crime (p.98).

Écerto que o fez limitando-se a reprovar, em termos técnico-jurídicos, a pretensão sustentada pelo Ministério Público (que era no sentido da existência de um “concurso real” de crimes). Mas poderia – e deveria - tê-lo feito também, se se tivesse valido dos factos que ele mesmo deu como provados, com base na própria ausência de dano patrimonial, nos termos exigidos no artigo 274º, nº 1 e 2 do CP. É patente que, para o próprio Tribunal, não se comprovou em audiência qualquer “dano patrimonial economicamente significativo”.

Esse é um reconhecimento relevante e que teria cabimento invocar a propósito da improcedência - que é substantiva e não formal - da grave acusação de “administração danosa”.

A comunidade, a que a justiça também se dirige, teria ficado mais esclarecida, e as ex-governantes teriam sido tratadas com mais equanimidade, se o Tribunal tivesse explicitado que, não se tendo provado tal dano em julgamento, não poderiam nunca ser condenadas pelo crime de “administração danosa” de que vinham acusadas pelo Ministério Público.

Mas o facto é que, fosse qual fosse a via técnico-jurídica para lá chegar, o Tribunal, quanto a este crime, fez o que se impunha: absolveu.

b) Absolvição das duas ex-governantes da totalidade do pedido de indemnização de USD $ 811.040,00

O Ministério Público sustentava também, com largo eco para lá do processo, que as ex-governantes tinham provocado prejuízos ao Estado no valor de USD $811,040.00 (oitocentos e onze mil e quarenta US dólares), e com base nisso reclamava delas o pagamento de uma indemnização nesse montante.

Ora o Tribunal, avaliando a prova produzida, absolveu-as da totalidade desse pedido, por - nem na totalidade, nem parcialmente - ter dado por comprovada a ocorrência desse prejuízo como resultado de condutas de sua responsabilidade.

Também aqui teria sido mais esclarecedor - e sem dúvida contribuído para uma mais adequada percepção da comunidade - se se tivesse posto em relevo que, aí onde o Ministério Público reclamava $USD 811,040.00$ e as ex-governantes alegavam nada dever, esse pedido se revelou, no todo, improcedente.

Mas, independentemente disso, o facto é que Tribunal decidiu da forma que a prova produzida em julgamento impunha e exarou um juízo claro sobre a pretensão da acusação:

“Não tem razão o Ministério Público em concluir que os hospitais não tinham necessidade de adquirir aquelas camas e que as mesmas não foram utilizadas”. E mais adiante, ao concluir: “Uma vez que as condutas das arguidas não causaram prejuízos patrimoniais ao Estado RDTL, não se condenam a pagar a indemnização ao Estado RDTL” (p.97).

Para além dos prejuízos patrimoniais, deve dizer-se, em acréscimo, que àcerca de quaisquer outros também nenhuma prova foi produzida, e sequer intentada, em audiência.

c) Julgada infundada a imputação de desdobramento fraudulento do contrato

O Ministério Público acusava a ex-Vice-Ministra da Saúde de ter desdobrado artificialmente o contrato em causa com vista a subtrai-lo ao regime legalmente previsto, recorrendo à prática que consiste em dividir o montante do custo total real da aquisição em várias parcelas de modo a que nenhuma delas atinja os limites de montante estabelecidos pela delegação de poderes” (p.30) - e de, assim, revelar a intenção de favorecer a empresa fornecedora.

O Tribunal, feito o julgamento, ponderados todos os elementos, documentos e prova testemunhal, não considerou provado que a ex-Vice-Ministra tivesse “visado impedir que o valor das aquisições à companhia Mac´sMetalCraft ultrapassasse um milhão de dólares, limite da sua delegação de competência” (p.30).

Era o mínimo que se impunha ao Tribunal, pois ficou claro que a delegação de competência, ao abrigo da qual a Vice-Ministra decidiu, só ocorreu em data posterior ao primeiro dos dois contratos. Quando se preparou e celebrou o primeiro não havia, pois, ainda essa delegação, pelo que toda a imputação acerca do desdobramento era ficcionada e vivia da conveniente - se não intencional - omissão da data dessa delegação (p.9)

Esta primeira triagem - que institucionalmente, para vantagem de todos, se justificaria que pudesse ter ocorrido mais cedo, nomeadamente em fase prévia ao julgamento - vem circunscrever a apreciação da matéria relevante ao âmbito de uma única acusação: a da prática, em co-autoria, de um crime de “participação económica em negócio”.

É com esse específico horizonte que prossegue, no fundamental, a análise subsequente, já que se reputa, não só formal como também substantivamente fundamentada a absolvição decretada quanto à acusação de “administração danosa”.

III - Pressupostos da alegada “participação económica em negócio“

A construção, factual e jurídica, da acusação de prática do crime denominado “participação económica em negócio” ocorreu - e terá adquirido, nos seus grandes contornos, significativa audibilidade comunitária - num contexto particular que não pode deixar de ser mencionado.

Há que referir que se trata de um contexto adensado por anteriores condenações doutros ex-governantes a penas de prisão efectiva, com reiterado recurso à mesma figura legal.

Nos termos do artigo 299º, n. 1 e 2, do CP, comete participação económica em negócio “o funcionário que, em razão do exercício de cargo público, deva intervir em contrato ou outra operação ou actividade, e se aproveitar dessa condição, para obter para si ou para terceiro, directamente ou por interposta pessoa, vantagem patrimonial ou, por qualquer outra forma, participação económica ilícita e deste modo lesar os interesses públicos que lhe cumpriria administrar, fiscalizar, defender ou realizar”.

No caso de dessa conduta resultarem para o Estado prejuízos superiores a 15,000 dólares americanos, a pena, em vez de prisão de 2 a 8 anos (nº 1), é de 3 a 15 anos (nº 2).

O crime de “participação económica em negócio” corresponde a uma figura legal não prevista, nem a qualquer título mencionada, na Convenção da Nações Unidas contra a Corrupção. Aportou em 2009 ao direito timorense, recebida, com adaptações e agravamentos, do Código Penal português - onde por sua vez chegara provinda do Código Penal de Mussolini (já não vigorando hoje na origem a norma em causa).4

O caso concreto constrói-se, factualmente, em torno dum fornecimento de equipamento hospitalar (camas), destinado a serviços públicos dependentes do

Ministério da Saúde, por parte de uma empresa australiana de que é proprietário e director um familiar (marido) da ex-Ministra das Finanças.

Há que referir liminarmente que o ordenamento jurídico-constitucional de Timor Leste não veda a empresas detidas, em qualquer percentagem, por familiares de membros do governo a possibilidade de contratar com o Estado ou outras pessoas colectivas de direito público.

Na ponderação efectuada, no momento próprio, pelo Parlamento Nacional, tal proibição ficou circunscrita ao caso dos “titulares de órgãos de órgãos de soberania” definidos no nº2 do artigo 1º da Lei nº 7/2007, de 25 de Julho (Presidente da República, Presidente do Parlamento Nacional, Primeiro-Ministro e Presidente do STJ) quando, por si ou familiares, detivessem uma percentagem do capital social superior a 10%.

Assim, independentemente da opinião, em sede de política legislativa, que se possa ter sobre o mérito dessa solução, o facto é que, por si, a circunstância de uma empresa ser detida por cônjuge de membro do governo, no actual direito timorense, não determina a ilicitude dessa contratação.

É de admitir que em certos segmentos da sociedade de Timor Leste, ou aí prestando serviço - e em particular daqueles que conhecem outros direitos (como é o caso de Portugal) onde a solução é diversa, para não falar dos que identificam essa norma com uma oportunidade de, em linguagem corrente, “participação em negócios” – prevaleçam juízos ou pré-compreensões reprovadoras, ou mesmo impulsos persecutórios, da contratação referida.

Essa reprovação, contudo não dimana da lei que actualmente vigora, nem nela tem acolhimento (Lei nº 7/2007, de 25 de julho).

Surpreendentemente, tal dilucidação básica - de grande importância para um juízo adequado da comunidade e uma clarificação dos pressupostos em causa - não foi feita, nem ao longo do processo nem em alusão na decisão final, o que foi alimentando, até ao presente, nomeadamente em audiência, uma ambiguidade penosa. Ou seja: uma crítica que, fora do Tribunal, podia ser legitimamente dirigida ao regime jurídico vigente, esteve com frequência latente como uma censura ilegitimamente orientada – porque sem base legal - contra pessoas.

Visto que era manifestamente inaplicável ao caso a figura penal da corrupção, em qualquer das suas modalidades - e também qualquer outro dos tipos legais mencionados na Convenção da ONU contra a Corrupção, de que é parte a República Democrática de Timor Leste - o Ministério Público, para criminalizar a actuação das ex-governantes, socorreu-se por uma vez mais - em complemento do frustrado recurso à “administração danosa” - da figura da “participação económica em negócio”.

Como já se disse, o artº 299º n.1 e 2 do CP, que a contempla, tem como referente externo próximo - com algumas alterações, mas, sobretudo, com forte agravamento - a solução do Código Penal português.

Interpretando e sintetizando a solução da lei timorense, lê-se no acórdão proferido (p. 88 ), em termos que só se pode acompanhar:

“O tipo objectivo previsto no nº 1 do artigo 299º, do Código Penal, pune:

a) a conduta do funcionário a quem compete, em razão das suas funções, fiscalizar, defender ou realizar os interesses patrimoniais que são lesados em negócio jurídico;
b) que com essa conduta lesar em negócio jurídico os interesses patrimoniais;
c) de forma a obter para si ou terceiros vantagem patrimonial;
d) de forma ilícita.

O crime consuma-se quando o agente lesa os interesses patrimoniais que foram confiados (apesar de poder não chegar a alcançar a participação económica, bastando essa intenção específica)” (fim da citação, p.89 ).

Foi pois a este preciso entendimento da lei que o Tribunal – e bem – se quis vincular e a que quis reportar a construção do seu juízo.

Independentemente doutras apreciações preliminares, começaremos por ver em que medida e termos o Tribunal deu aplicação ao seu próprio entendimento na decisão proferida e percurso que a ela conduziu. Abordaremos assim o que se nos afigura ser a primeira e principal contradição que vicia a decisão condenatória assumida.

IV - O ponto-chave do julgamento: não se provou que as ex-governantes tivessem causado prejuízos ao Estado

O que já foi adiantado em relação à improcedência total do pedido do Ministério Público quanto a alegados prejuízos ajuda a identificar a maior e mais nítida vulnerabilidade que afecta a decisão da primeira instância.

A prova em audiência - como o colectivo de juízes também por si concluiu - não permitiu dar por verificados quaisquer prejuízos para o Estado que fossem imputáveis às condutas das ex-governantes. Daí que elas, como se disse, tivessem sido absolvidas, na totalidade, do pedido de indemnização formulado pelo Ministério Público.

Isso deveu-se não apenas ao facto do Ministério Público não ter conseguido comprovar qualquer dos diferentes valores, alegações e cálculos a que a acusação foi sucessivamente recorrendo mas também ao reconhecimento expresso de que as ex-governantes não poderiam ser responsabilizadas por eventuais ocorrências posteriores ao termo dos seus mandatos ou áreas de responsabilidade como o seriam os problemas ligados à insuficiente utilização.

Ora a figura a que o Ministério Público recorreu para deduzir a acusação pressupõe - e o próprio Tribunal o assume expressamente, em síntese que fez sua e que aqui se está a seguir - a existência de “lesão de interesses patrimoniais” (p. 89)

Isto significa que, não se comprovando em julgamento esse elemento constitutivo da pretendida infracção criminal, haveria que considerar impossível – e logo abandoná-lo - o enquadramento punitivo ambicionado pelo Ministério Público. 

Paradoxalmente, esse mesmo enquadramento vem a ser, na decisão, mantido pelo Tribunal que, para esse fim, sacrifica as conclusões que ele próprio retira da prova produzida em audiência.

Trata-se de uma contradição crucial, que não só afecta os critérios da lógica - a que o Código de Processo Penal timorense, ao contrário doutros, explicitamente recorre - como põe em causa a própria compreensão da decisão pela comunidade. Na verdade, não havendo administração danosa, como se viu, nem se registando lesão de interesses patrimoniais da responsabilidade das ex-governantes, como agora se reconhece, qual o verdadeiro e objectivo fundamento que, para as severas penas decretadas, o Tribunal espera transmitir à comunidade?

Fica por saber se o Tribunal se terá dado conta desta dificuldade inultrapassável no decurso do processo de elaboração da decisão e do imperativo lógico e jurídico de a evitar.

Em nenhum momento o texto subscrito pelos membros do Tribunal adianta qualquer argumento sequer sobre o ponto. É certo que os penalistas portugueses Figueiredo Dias e Paulo Pinto Albuquerque - que lidam com lei que não é coincidente, é importante sublinhá-lo - aparecem, de forma erudita, citados no texto do acórdão. São no entanto invocados sobre noções básicas de direito penal (valoração da prova e concurso real), em nada contribuindo as citações em causa para esclarecer, muito menos ultrapassar, a contradição apontada, mesmo que fosse apenas num outro direito que não o timorense5 .

Deve sublinhar-se que, de forma coerente com esta visão, uma insistente tentativa probatória - em vão, como se viu - foi dedicada, no julgamento à procura da dimensão concreta da alegada lesão patrimonial. Porém nenhuma foi dedicada a outras, eventuais e não especificadas, como aliás não teria de ser, por irrelevantes.

Estava claro, na perspectiva do Tribunal, o que viria a ser expressamente assumido: o elemento que relevava para o tipo penal em causa eram os danos patrimoniais. Nessa senda, é importante dizê-lo, também nada do que ocorreu em audiência permitiu estabelecer, com um mínimo de objectividade, qualquer outro dano ou lesão.

Face ao entendimento do tipo penal que é o adequado e o expressamente assumido pelos autores do acórdão (p.89) a conclusão que a lógica imporia era a de que, face aos factos apurados pelo tribunal, se devia ter por excluída a possibilidade de se ter verificado o crime, por falta desse requisito.

Ou seja: tal como o “crime de administração danosa” tivera de desaparecer - e teria sempre de desaparecer, por ausência de “dano economicamente significativo” - assim deveria acontecer também, em justa lógica, com a “participação económica em negócio”, por não se terem comprovado em julgamento os prejuízos para o Estado que eram alegados.

Tal conclusão acarretaria, como efeito incontornável, que nada subsistiria, nesse caso, da acusação do Ministério Público.

É a partir do momento em que esse resultado lógico inevitável é recusado, com sacrifício e desaproveitamento das reais indicações provenientes de prova produzida, que o Tribunal é levado a incorrer nalgumas outras opções, inconvincentes e infundamentadas, e de gravosas consequências. O simples caminho da lógica tê-las-ia tornado de todo evitáveis.

V - A insustentável inferência de um conluio

O preço que o Tribunal pagou por, a partir do ponto atingido, ter sacrificado a lógica foi muito elevado, como qualquer leitor que siga a centena de páginas do acórdão poderá comprovar. Contradição, obscuridade, confusão, erro, omissão, insuficiência, sem exagero, abundam. E abundam tanto na óptica de um jurista como na do simples cidadão desejoso de compreender as razões do Tribunal e formar o seu juízo.

É certo que não se trata de debilidades que surpreendam quem tenha podido assistir a alguns episódios ocorridos durante o julgamento, de que podia temer-se o significado e implicações futuras em termos de preparação e imparcialidade. Mas o que se encontra agora neste campo, no âmbito da construção e fundamentação da decisão, é de uma dimensão que secundariza tudo o que antes se passou.

Em vez de uma enumeração exaustiva de argumentos técnico-jurídicos - que o Tribunal de Recurso não deixará por certo de examinar, suscitados pela via própria - apreciam-se aqui, prioritariamente, os aspectos que parecem cruciais para uma valoração externa do processo de decisão do Tribunal, na parte em que condenou as ex-governantes.

Trata-se de um processo de decisão que, à luz da prova produzida em julgamento, assenta na insustentável construção de uma “co-autoria ” - no fundo a suposição, sem prova, da ocorrência de um “acordo prévio” e de um “conluio” entre duas pessoas. Haverá que dizer que se trata de uma construção, à míngua de prova, erguida à revelia dos princípios universalmente reconhecidos da presunção da inocência e “in dubio pro reo” ( v. artigo 11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e artigo 34º da Constituição).

a) A escolha discricionária de uma “co-autora”

Com o propósito de fundamentar a condenação das duas ex-governantes, como “co- autoras”, o acórdão baseia-se numa leitura distorcida e falseadora da realidade - tal como a prova a permitiu levar, com bastante nitidez, à audiência. É uma leitura sem condições para passar num teste básico de plausibilidade.

Na versão adoptada no acórdão, a ex-Vice Ministra da Saúde teria, pelo seu lado, incumprido regras legais respeitantes à utilização da Reserva de Contingência e ao regime de aprovisionamento público, movida tão somente pela intenção de beneficiar a empresa que veio a fornecer o equipamento.

“Teve apenas como intenção garantir um benefício económico ao marido” da ex- Ministra das Finanças – eis o que o colectivo decide, em seu juízo, dar por provado (p. 21), ao mesmo tempo que lhe estende “ex aequo” a de todo insustentável conclusão de que teria “logrado” “contratar directamente com o Estado obtendo a entrega da totalidade da quantia resultante do projecto” (p.91).

Tê-lo-á feito consciente de que, se o não fosse essa a sua resposta, a condenação das duas ex-governantes se tornaria inviável? Não é de excluir, se levarmos a sério a preocupação que houve de citar doutrina a propósito de “co-autoria”.

Ora, provou-se em audiência que a empresa em causa tinha sido visitada, na Austrália, em momento imediatamente anterior, pelo próprio Ministro da Saúde, Nelson Martins, acompanhado por dirigentes da Administração Pública, incluindo o chefe do departamento de aprovisionamento do seu Ministério.

O Ministro, em resultado dessa visita, deu a conhecer, no âmbito do seu Ministério, as referências da empresa e as especificações respeitantes ao material. E deu também a abonatória indicação - era o Ministro - nos termos que ele próprio directamente assumiu, de que “eram aquelas as camas de que tinham necessidade”.

Ficou muito claro nas audiências que não foi a ex-Vice-Ministra - mas o Ministro - que teve o primeiro contacto, visitou, referenciou e indicou a empresa em causa, abonando a qualidade do material por ela produzida e o seu ajustamento às necessidades, tal como por si diagnosticadas.

Surpreende que o Tribunal tenha perseverado na ideia de que ela “teria apenas como intenção o benefício económico” mesmo depois de ter reconhecido - como acabou por ter de fazer - que não tinha sustentação real uma das principais acusações que o MP movia à ex-Vice-Ministra (como pretensa revelação da sua “intenção”).

Referimo-nos à acusação de que a ex-Vice-Ministra teria criado artificiosamente a sua própria competência para poder decidir no caso, através do desdobramento fraudulento de um contrato em dois.

O Tribunal teve de reconhecer que não se provou em julgamento que a ex- governante tenha visado impedir que o valor das aquisições ultrapassasse o milhão de dólares, limite da sua competência (p. 30). Não se percebe que, depois de admiti- lo - como se lhe impôs pela força das provas - o Tribunal não tenha decidido rever a sua infundada interpretação dos factos.

E não só o não fez, como nem sequer eliminou da matéria dada como provada justamente o facto contrário (p.20) - num exemplo apenas das muitas contradições que desqualificam o acórdão - perseverando, para isso, na omissão da data da delegação de competências (p.9). Essa simples indicação da data teria bastado para pôr a nu mais cedo a impossibilidade de tal interpretação.

No que respeita ao recurso à utilização da Reserva de Contingência, ficou plenamente demonstrado, com base em documentos e prova testemunhal, que a decisão, nos dois contratos em causa, foi proferida - como legalmente tinha de o ser - pelo Primeiro Ministro de então, Xanana Gusmão. E ele próprio o assumiu em audiência.

Quanto à escolha do procedimento de ajuste directo, no primeiro contrato (contrato A, 2011) constituiu, também ela, decisão - documentada e assumida - do ex- Primeiro Ministro, que aliás a fez acompanhar, por escrito, de uma expressa nota de urgência.

Já no segundo contrato (contrato B, 2012), o próprio ex-Primeiro Ministro Xanana Gusmão, uma vez autorizado o recurso à Reserva de Contingência, remeteu-o, para os passos subsequentes, à Vice-Ministra. Isto por esta ter entretanto recebido do Ministro da Saúde Nelson Martins a delegação da competência para o efeito (delegação datada de 12.07.2011, posterior ao contrato A, como já se disse).

Neste segundo caso, integrando-o no contexto governativo concreto em que ocorreu, é patente que o recurso ao ajuste directo traduz, antes de mais, a pura e simples manutenção do mesmo procedimento - e em relação ao mesmo tipo de material - que fora anteriormente validado e despachado pelo Primeiro-Ministro.

Não houve alteração de padrão de decisão, antes repetição. E não fora a delegação sobrevinda, a última das quatro decisões em causa teria sido também sido formalmente tomada - e assim assumida pelo próprio em audiência – pelo ex- Primeiro Ministro Xanana Gusmão, como sucedera com as três anteriores.

Só que, desta vez, o contexto apresentava-se particularmente agravado por novas circunstâncias específicas (surto de doenças tropicais/dengue) que tinham gerado uma situação de carência e urgência acrescidas, como ficou patente no julgamento.

Assim, como se evidenciou em audiência, com vista à aquisição do mesmo tipo de material - e deparando-se, com toda a regularidade, dois contratos como o Tribunal agora reconhece - deparam-se quatro decisões (duas visando o acesso à Reserva de Contingência e duas o aprovisionamento em causa).

Dessas quatro, três são do ex-PM que as assumiu na sua plenitude - e uma só é da Vice-Ministra, que através dela dá continuidade às três decisões antecedentes do PM, mantendo a opção anterior - não por si criada - na empresa que fora visitada, indicada e referenciada pelo Ministro da Saúde, Nelson Martins.

Neste quadro, que resultou bem claro da prova testemunhal e documental, é contrário às regras da experiência e da razoabilidade que o Tribunal tenha conferido à ex-Vice Ministra da Saúde o “protagonismo” que decidiu atribuir-lhe numa aquisição alegadamente inquinada.

Essa falha na percepção da realidade exprime-se em dois momentos: primeiro, ao atribuir essa marca à sua intervenção no processo de acesso à Reserva de Contingência, onde não era a ela que cabia decidir; a seguir, no âmbito do processo de aprovisionamento, onde se limitou a manter, com renovados e reforçados argumentos circunstanciais, a escolha que fora antes directamente decidida pelo ex- Primeiro Ministro no âmbito do contrato A.

O mínimo que se pode dizer é que se trata de uma leitura distorcida de uma realidade - que à experiência comum se apresenta como necessariamente diferente – numa espécie de “montagem selectiva” para criar uma “co-autora” que tornasse possível, por seu lado, colocar a ex-Ministra das Finanças na veste, também, de “co- autora”.

Sucede que, tudo visto, nenhum elemento objectivo torna plausível a “intenção” imputada à ex-Vice-Ministra, ou permite com um mínimo de solidez, sequer de realismo, “inferi-la”. Porque haveria de infringir normas para, alegadamente, beneficiar uma terceira entidade, com o qual não se evidenciou em qualquer momento que tivesse laços susceptíveis de o justificar? Que tipo de motivação, que espécie de contrapartida, que outro factor minimamente evidenciado poderia ter levado a ex-governante a incumprir com o exclusivo propósito, que lhe é assacado, de favorecer a empresa fornecedora – para não referir a insólita referência a

“contratar directamente com o Estado obtendo a entrega da totalidade da quantia do projecto” (p.91)!? Sobre isto tudo, que é bem relevante, nenhuma prova, nenhum sinal indiciador sequer foi trazido a juízo.

Se no caso da ex-Ministra da Finanças poderia, em teoria, ser invocada, como ponto de partida, a relação familiar - não obstante o regime legal aplicável ser o que já foi indicado - no que toca à ex-Vice-Ministra da Saúde não se revelaram em julgamento quaisquer provas que dessem um mínimo de plausibilidade, de verosimilhança, mesmo de inteligibilidade, à “intenção” que – numa inferência inequivocamente forçada - lhe foi atribuída. Não se vê como, em consciência, lhe possa ser assacada, “a satisfação do interesse patrimonial privado” como “motivação” (p.90 e p.92), ou a “intenção de obter uma participação económica ilícita” (p. 89) – o que só não se enfatiza , neste ponto, em relação à ex-Ministra das Finanças dada a irrelevância da sua actuação no processo de aprovisionamento.

À face do que se passou no julgamento, e de tudo que consta do processo, fica a convicção de que é destituído de fundamento objectivo “inferir” - como se fez no acórdão - a existência de dolo, e muito em especial, como se lê com surpresa nesse texto, “o elemento subjectivo específico (ou adicional) relativo à intenção de obter, para si ou para terceiro, participação económica ilícita”.

Sem essa forçada e infundada inferência - que é feita em sentido contrário aos princípios universais da presunção da inocência e “in dubio pro reo” - toda a acusação decairia – sendo certo que nenhuma poderia sobreviver, desde logo, à falta de prova de prejuízos causados ao Estado.

O Tribunal, por outro lado, não teve em devida conta a diferença entre direito administrativo e financeiro e direito penal e a acentuada diferença entre os regimes de efeitos e de sancionamento que deles são típicos. O facto de se depararem opções discutíveis em pura sede administrativo-financeira nunca poderia determinar transposição automática para a esfera da prova em direito penal.

Além disso, não sendo o tribunal penal o capacitado para se ocupar do apuramento, efeitos e sancionamento de - eventuais - desconformidades no plano do procedimento administrativo e financeiro, é abusivo que se dê por adquirida uma pretendida ilegalidade de actos ou de contratos (de cujos resultados económicos o Estado beneficia, e sem prejuízos causados) e muito em especial para ver nisso traduzido o pretendido elemento doloso.

E se acaso fosse isso admissível, por que razão os seus efeitos se situariam e concentrariam na ex-Vice Ministra e não em plano superior ao dela, onde comprovadamente foram assumidos?

Resta a um observador que procure compreender uma hipótese interpretativa. Não havendo prática de actos relevantes, no âmbito dos procedimentos tidos por críticos, por parte da ex-Ministra das Finanças, o Tribunal vislumbrou no recurso à “co-autoria” ( a que dedicou uma reveladora citação doutrinária ) a única via técnica para procurar fundamentar um juízo condenatório que, co-envolvendo as duas ex- governantes, atingisse também a primeira.

Viu-se por isso na necessidade de procurar situar nas intervenções ocorridas na esfera do Ministério da Saúde (onde aliás também não decorrem as decisões mais relevantes, como se viu assumidas pelo ex-Primeiro Ministro) os sinais de uma conduta a que se tornava imperioso atribuir características dolosas. Desse “imperativo” adveio o afastamento a que chegou do panorama emergente da prova produzida e a insustentável atribuição de dolo.

b) A suposição de um “acordo prévio” em cenário implausível e tempo errado

A ausência de qualquer elemento sério capaz de conferir qualquer verosimilhança ou plausibilidade à alegada motivação e ao suposto propósito da ex-Vice Ministra, no sentido de preterir intencionalmente regras com vista a beneficiar um terceiro, colocou o Tribunal na dependência duma das teses de mais remota susceptibilidade de prova que a acusação avançara.

Era a pretensão - algo surpreendente, para não dizer insólita - de que tinha havido alguns almoços entre as ex-governantes, um deles com a presença do marido da ex- Ministra da Finanças, mas todos com outros participantes e potenciais testemunhas, para inferir daí que neles fora “planeado” o alegado benefício. Neles teria sido estabelecido, e sempre sob o olhar e a proximidade de terceiros, o acordo para uma subsequente “acção concertada”.

Pois que a doutrina requeria “uma decisão conjunta” e “um acordo prévio” (p.88) - sem o que não se poderia falar de uma “co-autoria” sobre a qual se invoca doutrina externa - esses almoços aí estavam para preencher o requisito.

Só que, também aqui, não se viu trazida ao julgamento qualquer prova do que se possa ter dito em tais almoços, em que, como já referido, sempre estiveram acompanhados de outras pessoas Tornou-se aí claro que nenhuma delas ouviu ou reportou o que quer que fosse a este respeito.

Nada se tendo provado em julgamento sobre o conteúdo de qualquer conversa havida nesses encontros, e sendo, independentemente deles, de todo inabordada a hipotética imputação de qualquer motivação concreta - desde logo quanto àquela das intervenientes que não tem ligação relevante com o empresário - não é nem avisado, nem admissível, inferir o conteúdo atribuído a esses encontros. Ou outro qualquer, bem entendido.

Em vez de reflectir a experiência da vida, uma tal inferência apenas traduz uma inversão da experiência, ou um enorme deficit dela. A dois membros de um governo que estivessem interessados em concertar qualquer procedimento, sem que outros o soubessem e pudessem mais tarde testemunhar, seria muito mais fácil e acessível fazê-lo nos locais onde habitualmente se encontram e com óbvia frequência podem reunir entre si.

Seria lógico que andassem a promover almoços, supostamente inusuais entre governantes, levando atrás motoristas, secretárias e outros dirigentes da Administração Pública, em número elevado, como se provou em audiência, de forma que se deixasse essa pègada bem nítida na memória de qualquer deles? E ainda por cima recorrer para isso a restaurantes abertos ao público? E sempre com as secretárias e outras a “testemunhar”?

É algo demasiado “naif” para ser real, ou meramente plausível, mas o certo é que essa foi a via que - primeiro a acusação e depois os Juízes de primeira instância - usaram para “ inferir” o estabelecimento do “ acordo prévio”.

Em suma: deduzir, a partir de nada, um conteúdo de “acordo prévio” de “concertação de plano criminoso” para tais almoços, com as características que ficaram claras em audiência, é agir contra as regras da experiência e os critérios da lógica (a que até alude,repete-se, o Código de Processo Penal timorense). Representa, além do mais, uma escolha contra a lei das probabilidades que colide contra o princípio, universalmente reconhecido, “in dubio pro reo“ e da presunção da inocência (artigos 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e 34º da Constituição).

Um outro ponto capital bastaria, no entanto, para viciar a tese acusatória dos almoços de “concepção do plano” e de estabelecimento do “acordo prévio”. Um ponto de que o Tribunal, não se sabe porquê, não se apercebeu – ou não mostrou aperceber-se.

É que o procedimento, a escolha do fornecedor, as decisões quanto ao contrato A (o tal que resultaria para a acusação de um desdobramento viciado, que seria já expressão do plano) ocorrem em 2011 .

Ora, os almoços de que, segundo o Tribunal, teria saído o “pacto criminoso” são em 2012, e mais exactamente, como o colectivo pretende, em Abril de 2012, quando não só se encontra consumado o contrato A como já estão em curso os procedimentos respeitantes ao contrato B, encontrando-se já então definida a escolha do tipo de ajuste e a manutenção do mesmo fornecedor.

Como é que o Tribunal pôde admitir uma fórmula explicativa em que primeiro se actua “concertadamente” e depois, bem mais tarde, se fazem os almoços, ou o almoço, de suposto estabelecimento do “ acordo prévio”?

Diz o acórdão, em sábio enunciado teórico, que “é necessário que se prove a existência de um acordo prévio “(p.88). Mas aqui parece ter-se invertido tudo - uma inversão dos critérios da lógica que não abona acerca da integridade do processo decisório que foi seguido e uma contradição que descarta o almejado requisito duma “co-autoria”.

VI - Representação deturpada do processo de decisão governativo

Contra o que ressaltou das audiências, o acórdão veicula uma deficiente e errónea leitura da estrutura e dinâmica da governação e do processo político-administrativo, tal como decorrem numa sociedade com características democráticas. E pretende fazer tábua rasa do papel dos impulsos políticos externos (parlamento/oposição/ media) e da pronunciada diferenciação dos vários níveis de responsabilidade e encadeamento (PM/Ministro/Vice-Ministro) que caracterizam a realidade governativa.

Isso surpreende, sobretudo, quando perante o Tribunal vieram depor, detalhadamente, figuras como Xanana Gusmão, Mari Alkatiri, Ramos Horta, ex- ministros, deputados, etc.

E é, além disso, gravoso quando esse enviesamento conduz a uma artificial atribuição de responsabilidade, para efeitos penais, a quem não detém nem posição, nem decisões, nem assume inovações de percurso que o possam justificar (isso com base, como se disse, na atribuição de um protagonismo inverosímil).

Ficou provado no julgamento que, nos últimos meses de 2011 e primeiros de 2012 se verificou um surto de dengue, que, revelando de forma dramática limitações do sistema hospitalar, nomeadamente em relação a camas - carências certamente já em parte existentes, mas adquirindo de súbito visibilidade - provocou várias intervenções e debates no Parlamento, visitas de deputados e do líder da oposição a hospitais, críticas vigorosas e exigências públicas de respostas urgentes e de investimento no sector, tudo com expressão documental e projecção mediática, local e externa.

A prova produzida evidencia, num primeiro momento (contrato A, 2011) o ex- Ministro da Saúde Nelson Martins a visitar a empresa fornecedora em causa - concluindo e transmitindo de seguida aos serviços que “era aquele o tipo de camas de que necessitavam” e a passar-lhes as respectivas referências - e o ex- PM Xanana Gusmão a aprovar e despachar (i) o recurso à Reserva de Contingência para financiar aquisições para o sistema de saúde e, ele próprio ainda, (ii) a escolha do ajuste directo, para um primeiro fornecimento limitado.

Num segundo momento (contrato B/2012), com o surto de dengue declarado e as consequências a assumirem a dimensão e o eco referidos, é desencadeada uma aquisição adicional, que, obviamente, só vem a produzir efeitos meses mais tarde.

A decisão sobre o recurso à Reserva de Contingência volta a ser do ex-PM , que remete depois o procedimento subsequente para decisão da ex-Vice Ministra (que entretanto recebera - do ex- Ministro da Saúde que visitara a empresa - delegação de competência para tal efeito ). A Vice-Ministra não “descobre”, não inova: repete exactamente (escolha e fornecedor) o que fora antes a indicação do seu Ministro e a decisão anterior do PM.

É neste contexto que os Juízes de primeira instância decidem considerar suspeito que os impulsos e decisões proviessem “do topo” antes de serem previamente solicitadas “de baixo” pelos funcionários dos serviços - como se não fosse essa a prática tantas vezes seguida, e mesmo necessária, em democracia, face a situações como as descritas, e mesmo em muitas mais em que a a iniciativa e a reacção política são chamadas a ultrapassar a inércia ou a rotina administrativa.

Ora os Juízes de primeira instância, com base numa visão distorcida, e menosprezando a prova, decidiram interpretar o sucedido como algo que responsabiliza – e só ela --a Vice-Ministra, atribuindo-lhe – e a ela só, nessa esfera - o propósito de “beneficiar” a empresa fornecedora. As carências revelam-se, o Ministro transmite – e admite-o - que necessitavam daquelas camas, as taxas de ocupação das camas elevam-se (atingem os 115% ,quando não deveriam ir além dos 85% ), os deputados e o líder da oposição movimentam-se, a imprensa confere toda a projecção ao momento crítico, o ex- PM decide , o Ministro da pasta tinha visitado e referenciado a fornecedora… mas a imputação, em toda essa linha de responsabilidade, é dirigida à ex-Vice-Ministra. É inverosímil, para não dizer irreal - dando lugar a todas as conjecturas sobre as motivações que aqui terão conduzido os Juízes de primeira instância.

Daqui deriva também a inadequação (que seria ainda mais ostensiva se não se tivesse isolado a ex-Vice-Ministra) da tentativa de estabelecer, para efeitos penais, que não estariam reunidos os requisitos de “imprevisibilidade” e “urgência” para os procedimentos aplicados poderem ser usados.

Tendo o recurso à Reserva de Contingência sido decidido, e assumido em audiência pelo PM, que sentido e legitimidade pode ter censurar uma Vice-Ministra, e só ela, por dar por verificados os específicos requisitos de urgência necessários para o procedimento administrativo?

Seria exigível que esta ex-governante tratasse como não sendo elegível para efeitos de replicar o procedimento administrativo anteriormente seguido aquilo que recebera ao nível da chefia do executivo uma classificação e uma indicação política em tal sentido?

Um mínimo de percepção da realidade do processo político, na sua ostensiva ordenação de níveis de iniciativa e responsabilidade, faz situar a leitura crucial da situação vivida e a decisão subsequente ao nível mais elevado. Isso mesmo decorreu, com nitidez, do depoimento que o ex-PM prestou no julgamento, assumindo a plena responsabilidade das decisões tomadas - depoimento a que o Tribunal, inexplicavelmente, não quis atribuir o relevo devido.

Como órgão de um Estado constitucional, seria de esperar que o Tribunal tivesse, à partida, uma representação mais verosímil da realidade do processo político que é a fonte continuada da sua legitimidade democrática.

Mas, para lá disso, dele se tem de dizer sobretudo que dispôs, neste julgamento, de um momento privilegiado para se inteirar mais detalhadamente do contexto real das decisões, nas suas motivações, hierarquia, responsabilidade e iniciativa - visto que compareceram perante o Tribunal e se dispuseram a responder em audiência a todas as perguntas quer o Primeiro-Ministro quer o líder da oposição da altura dos factos.

Tendo comparecido a depor dois ex- Presidentes da República, dois ex-Primeiro- Ministros, ex-ministros, governantes, ex-deputados, quer o Ministério Público quer o Tribunal revelaram objectivamente escasso interesse em aproveitar essa disponibilidade para melhorar o conhecimento do processo real de decisão - que foi também uma decisão política, é a realidade indesmentível - verificado no caso.

Sucede que, ao agir assim, estavam a preferir “inferir” essa realidade a partir da percepção, limitada, de um conjunto de funcionários administrativos, dissecando ao pormenor as rotinas desses funcionários (que algumas vezes, infelizmente, nem puderem evidenciar a preparação suficiente para alguns dos cargos). Ou então a partir da sua própria pré-compreensão, como nem a prudência, nem a lógica, nem o direito favoreceriam.

O certo é que, com os depoimentos dos referidos ex-titulares – que o Tribunal desvalorizou, de forma parcial - tornou-se evidente em juízo que, num contexto de evidente relevo e implicações políticas, a interpretação da situação vivida e a cadeia de decisões subsequente foram assumidas pelo ex-PM.

E que o foram, nomeadamente, na sua dimensão de “urgência” e de “excepcionalidade”, para não reutilizar “contingência” - que já é utilizada na denominação da Reserva. Sublinha-se: parece irreal e ilógico, face à prova, concentrar essa dimensão na ex-Vice-Ministra, como faz o acórdão.

Mas foi por esse caminho que decidiu ir o Tribunal, para procurar sustentar a inverosímil tese de uma “co-autoria”. É que, como já se disse, sem essa peça da construção não se tornaria viável, face à lei existente, co-envolver a ex-Ministra das Finanças.

VII - Invocação de conflito de interesses sem base legal

Atenta o facto das competências decisórias nos procedimentos administrativos se encontrarem sediadas, e terem sido comprovadamente exercidas, fora do Ministério da Finanças (ou seja: no que toca a decisões relevantes, elas pertencem ao ex-PM e à ex-Vice-Ministra) assume relevo, em relação à ex-Ministra, a tentativa de fazer crer que esta se encontraria legalmente impedida de praticar ou de participar em qualquer acto, mesmo que puramente instrumental ou de expediente, e em que grau fosse de conexão com elas.

Na verdade, a prova documental e testemunhal - ainda que nalguns pontos grosseiramente desrespeitada em passos do acórdão – foi no sentido de que não lhe pertenceu qualquer acto que, directa ou indirectamente, influenciasse ou condicionasse a escolha da empresa do marido ou os termos da contratação.

Exprime-se aqui, em primeiro lugar, um dos pré-juizos com que recorrentemente deparamos nos pressupostos da decisão do Tribunal, e aqui mais uma vez à revelia da lei: a de que as regras que fossem eventualmente aplicáveis a funcionários públicos seriam, também, automaticamente aplicáveis a membros do governo.

Ora isso não pode decorrer da lei timorense: artigo 4º,nº1, alínea a) do Estatuto da Função Pública, aprovado pela Lei nº8/2004, de 16 de Junho, a conjugar com a Lei nº 7/2007, de 25 de Julho. Há uma clara delimitação negativa no âmbito daquele Estatuto, operada pelo preceito referido, que exclui, além de outros, os “membros do governo”. E, assim, o disposto no artigo 10º sobre conflito de interesses não lhes é aplicável, contra o que diz o Tribunal.

Por discutível que seja – em sede de política legislativa - a opção que conduziu a que não exista regulação de tal matéria no âmbito da Lei nº 7/2007, de 25 de Julho, isso não torna aplicável a membros do governo o disposto no artigo 10º da Lei nº 8/2004, de 16 de Junho, contra a expressa menção da lei - e era pela lei que o Tribunal deveria pautar os seus juízos.

Acresce que a prova documental e testemunhal trazida a julgamento permitiu traçar um quadro claro: (a) a ex-Ministra das Finanças não teve intervenção no procedimento de aprovisionamento e (b) no procedimento de acesso à Reserva de Contingência, que lógica e temporalmente o antecede, ela não só não tomou qualquer decisão como não teve qualquer outra intervenção que pudesse influenciar ou condicionar a decisão final (que foi, como se viu, sempre tomada, e assumida, pelo ex- PM). Não é o facto de o acórdão deturpar o conteúdo de documentos e depoimentos (como acontece quando se lhe atribui a remessa de um ofício que não é seu ) que pode pôr em causa a clareza das provas.

Sucede que nem o decurso do julgamento nem o acórdão deixaram seguro – antes pelo contrário – que o Tribunal representasse com nitidez a diferenciação, legal e conceptual, entre o procedimento de acesso à Reserva de Contingência (obtenção de financiamento) e o procedimento de aprovisionamento (aquisição do equipamento). Isso terá constituído um factor adicional de dificuldade.

Efectuada essa básica destrinça intelectual, tornar-se-ia claro que a única das ex- governantes que podia enfrentar no caso um conflito de interesses (a ex-MF, dada a relação familiar) não teve intervenção no procedimento de aprovisionamento, o único que poderia permitir contacto com a escolha da empresa fornecedora.

Para além disso, se conferido o exacto quadro legal vigente, verifica-se que não existe uma disciplina jurídica aplicável a conflitos de interesses no caso de membros de governo, por expressa opção do legislador. Essa é uma falta que – independentemente da sua irrelevância para o caso concreto - se imporá porventura ser suprida.

Mas não é aos julgadores que cumpre fazê-lo, nem agir como isso estivesse ao seu alcance, no âmbito de uma actividade que deve pautar-se pela aplicação das leis vigentes a factos.

Assim, também no caso da ex-Ministra da Finanças, o Tribunal não logrou identificar qualquer acto por esta praticado em que tivesse sido violada uma norma legal vigente, faltando assim um pressuposto indispensável para que se pudesse, com fundamento próprio, invocar o tipo legal em causa (“participação económica em negócio”).

O recurso utilizado para contornar essa dificuldade foi o de confundir os procedimentos e procurar estender a membros do governo as regras aplicáveis a funcionários, mesmo quando essa não era a vontade explícita do legislador. Isto para lá, obviamente, da escolha de uma “co-autora” (que afinal não era a autora das decisões relevantes) e de um “acordo prévio” (erroneamente inferido de eventos ocorridos quando os factos já iriam no adro).

VIII - Excessos e insuficiência de fundamentação, exigências processuais incumpridas

Certamente para obstar à solução lógica que seria o total decaimento da acusação, os Juízes de primeira instância não se limitaram a adoptar, frente à prova, algumas leituras enviesadas e deturpadoras da realidade, que não lograram representar adequadamente, como já houve ocasião de anotar a propósito de alguns pontos específicos.

Também se incorre mais do que uma vez numa apreciação abusiva de situações ocorridas noutras esferas, em pontos em que o escrutínio deveria ter observado um grau apropriado de “self-restraint”.

Isso acontece, por exemplo, quando se pretende recusar aos responsáveis governamentais, a começar pelo Primeiro-Ministro, a margem de apreciação indispensável para, num concreto contexto político, considerar mais ou menos urgente, ou inadiável, ou imprescindível uma aquisição, versando equipamentos colectivos reconhecidamente “importantes” e “necessários” e até inseridas e previstas em Plano Estratégico para o Sector (cf. depoimento do Ministro Nelson Martins). Quando se estatui, como se de matéria de facto se tratasse, que “as camas não responderam a necessidades urgentes como invocado” (p.19), para não só censurar como procurar fundamentar a penalização de quem estava democraticamente legitimado para governar, pisa-se uma fronteira de legitimidade.

É também para evitar esse inaceitável resultado que em vários ordenamentos democráticos se apurou o conceito de “judicial self-restraint “, de forma a que o exercício do poder judicial não comprima indevidamente o espaço de sustentação das políticas de governo que os outros poderes (nomeadamente o executivo) são responsáveis por desenvolver.

Para lá de tais aspectos, cujo desenvolvimento aqui se não justifica, é preciso dizer que num Estado de Direito democrático (artigo 1º da Constituição), uma condenação penal da natureza da presente supõe uma exposição do processo de decisão e suas conclusões, proporcionando uma fundamentação conforme à lógica - que, no plano interno, habilite o Tribunal de Recurso a exercer cabalmente o seu papel e, no plano externo, aqui do maior relevo, habilite a comunidade a compreender a fundamentação.

Que sentido tem exarar, como conclusão, que as ex-governantes “lograram” “contratar directamente com o Estado obtendo a totalidade da quantia do projecto” (p.91)? Que “quantia”, afinal, e que “ projecto”, de que antes nunca se falou? Trata- se de uma inexplicável e insuperável confusão a fazer as vezes de uma fundamentação.

Não é o elevado número de páginas do acórdão (100) que, por si, pode ajudar a satisfazer a exigência de uma fundamentação inteligível, conforme aos critérios da lógica. Pelo contrário: quando deficiências, contradições e obscuridades de várias espécies se vão acumulando ao longo dessas páginas, forma-se no leitor qualificado, tenha ou não assistido ao julgamento, a convicção de que ele não satisfaz um requisito básico que é o de, num Estado de Direito, não poder haver condenação, muito menos prolongada privação da liberdade, sem uma fundamentação inteligível, congruente, respeitadora - além da Constituição e da lei - da própria lógica. Quem seja sensível às exigências da razão lógica e domine a língua portuguesa, em que o acórdão se apresenta escrito, concordará que isso aqui não acontece.

Várias das falhas registadas envolvem ou resultam na verificação de infracções qualificadas às regras processuais vigentes no direito timorense (v.g. obrigatoriedade de formulação de quesitos, matéria a integrar obrigatoriamente neles, separação rigorosa de matéria de facto e de direito, regras específicas sobre

fundamentação,etc.), cujos contornos, pelo menos em relação a várias delas, já foram por mais de uma vez esclarecidos, com rigor, pelo Tribunal de Recurso, em qualificadas decisões.

Tendo sido interpostos no presente caso os competentes recursos, não se duvida que tais aspectos, sem prejuízo de todos os demais que aí se encontrarem suscitados, merecerão do Tribunal de Recurso um escrutínio detalhado.

IX - Uma questão sem o relevo que se insinua ter

O facto de não se terem comprovado, em julgamento, prejuízos patrimoniais causados ao Estado, e bem assim outros de qualquer natureza, imputáveis à conduta das ex-governantes retira alcance e torna, em rigor, irrelevantes todos os demais tópicos - pelo menos do ponto de vista penal, que é o que aqui importa.

Não obstante, por óbvias razões, abordar-se-á também aqui, independentemente disso, um dos aspectos a que foi conferido inexplicável relevo no julgamento e na decisão, e de que se procuraram extrair indevidas consequências: a caracterização duma conta bancária em que foram depositados valores destinados ao pagamento do preço à empresa fornecedora.

Resultou da prova produzida que um montante destinado ao pagamento à empresa começou por ser depositado em conta que fora aberta, indiscutidamente, pela pessoa que é proprietária e director da empresa; e que essa conta funcionou como ponto de passagem, tendo a seguir a totalidade do montante em causa transitado para conta aberta, formalmente, em nome da empresa (a fim de integrar o património dela, como óbvia contrapartida do equipamento, que saíra antes da empresa).

Esse procedimento pode suscitar comentários diversos - mas nenhuma ilegalidade se viu apontada.

A prova produzida foi convincente, em particular a mais qualificada e não posta em crise, no sentido de se poder concluir que era uma “conta individual”, que só em condições muito específicas o cônjuge poderia movimentar (o que aliás não se verificou).

Com alguma surpresa, e em contraste com outros momentos, o tribunal empenhou- se a fundo na tentativa de pôr em causa essa visão, e procurou deixar caminho à ideia de que se trataria antes de uma “conta conjunta”, ou ainda “conta mútua” - não se sabe se com a intenção de sugerir que o preço pago transitaria directamente para a esfera da ex-Ministra, curto-circuitando a empresa fornecedora. Será esse o misterioso sentido do passo do acórdão em que se diz, contra a realidade, que as ex-governantes “lograram contratar directamente com o Estado obtendo a entrega da totalidade da quantia resultante do projecto” (p.91)?

Ora, sendo certo que a empresa fornecedora pertencia ao marido da ex-Ministra – sem dessa circunstância, repete-se, decorrer também qualquer ilegalidade - parece razoavelmente indiferente para o caso em apreço que a conta em causa fosse “individual” ou “conjunta”, ou como também se escreveu “mútua”.

Essa conta serviu como um momentâneo ponto de passagem a caminho da empresa, credora do valor; eram marido e mulher; a contratação entre a empresa e o Estado não é legalmente impedida ou ilegitimada, no direito timorense, por efeito dessa conexão familiar. Torna-se difícil compreender a relevância, para o caso, da caracterização bancária dessa conta, sobretudo, repete-se, quando o direito positivo não requer a separação patrimonial como condição daquela possibilidade de contratação.

Mais uma vez, a questão crucial aqui é: que prejuízos adviriam para o Estado dessa eventual, e inexacta, caracterização adicional como “conta conjunta”, ou ainda “mútua”, que o Tribunal alega, que viessem alterar o panorama global, por ele próprio reconhecido, de que nenhuns prejuízos se comprovaram?

X - Uma inconstitucionalidade que o Tribunal não podia deixar de apreciar: a violação da reserva absoluta do Parlamento Nacional

O enquadramento jurídico efectuado, não obstante fazer aplicação de uma figura penal recebida através da influência referencial exercida pelo ordenamento português, não toma em consideração, como devia, uma relevante questão que foi suscitada em audiência pela defesa.

Essa questão é a da inconstitucionalidade da norma legal que procede à equiparação a funcionário de quem seja membro de órgão de soberania (membro do governo no caso), e daquela que usa essa mesma condição como factor de agravamento.

Sem o auxílio dessa equiparação, que foi operada por via de Decreto-Lei (DL nº 19/2009, de 8 de Abril ) – como não acontece, nem constitucionalmente poderia acontecer, em termos análogos, no ordenamento jurídico tomado como referência - as ex-governantes não poderiam, no âmbito do presente processo, ser tratados, como o foram, como funcionários (e ver depois as penas agravadas).

De facto, a Constituição timorense, como outras, integra a definição do estatuto dos titulares de cargos políticos no âmbito da reserva absoluta do Parlamento, e é nesse âmbito que se inscreve a definição do respectivo regime de responsabilidade penal.

Não poderia pois um Decreto-Lei, emanado do Governo, e ainda que autorizado, proceder à equiparação em causa - como o fez o Decreto-Lei acima referido que aprovou o CP. Sendo a “participação económica em negócio”, conceptual e legalmente, um “crime de funcionário “, a pretensão de a aplicar ao caso colide necessariamente com a reserva constitucional.

Nos termos da Constituição, não podem os Tribunais aplicar normas que a desrespeitem – e isso diz respeito ,em concreto, aos artigos 301º, nº1, 302º, nº1, a) e 299 º do CP). Assim, competia ao Tribunal, respeitando-a, ter recusado a aplicação de tal norma - e, em primeiro lugar, era seu dever examinar e pronunciar-se sobre a questão suscitada (artigo 2º, nº 2 da Constituição).

Em vez disso, o Tribunal, confrontado com a questão da inconstitucionalidade, revelou, no mínimo, não estar preparado para lidar com esse tema - que é angular na construção do Estado de Direito contemporâneo.

Fê-lo a ponto de transmitir a ideia, num primeiro momento, de que tal constituiria uma expressão de desrespeito -- quando está justamente em causa o inverso, ou seja, a questão da respeito, acima de todas as outras, devido à lei fundamental dum Estado que se assume como um Estado de Direito Democrático (artigo 1º da Constituição).

Num segundo momento, omitindo o ponto na economia do acórdão, cimentou a ideia de que não encarava essa pronúncia como um dever seu, o que é desconforme ao papel atribuído aos tribunais pela Constituição, revelando incompreensão dessa função no sistema de controlo da constitucionalidade das leis adoptado em Timor Leste e de uma dimensão (“judicial review”) hoje universalmente reconhecida.

XI - Uma solução punitiva desproporcionada e ímpar

Deve observar-se que a moldura penal que é consagrada no Decreto-Lei timorense ( que aprovou o CP) - a que o Tribunal deu, como se disse, uma aplicação, além de injusta, inconstitucional - relativamente a uma figura penal praticamente só consagrada nalguns direitos influenciados pelo CP português de 1982, é, para a hipótese em causa, a mais elevada e desproporcionada de todos eles.

E isto para não entrar aqui em linha de conta com os direitos, claramente maioritários, em que tal incriminação não está sequer autonomizada ou de todo consagrada.

Assim, no caso de Portugal, Macau/China, Cabo Verde, Moçambique, Guiné-Bissau, perante imputação idêntica seriam aplicáveis limites claramente inferiores – se acaso fosse preenchido o tipo legal. Acrescente-se que, com a equivalente “advocacia administrativa”, no Brasil, a distância seria ainda mais pronunciada (artº 321º do Código Penal, com a previsão de um limite máximo de um ano de prisão ).

Nalguns desses casos, desde logo Portugal (e num ou outro mais que seguiu de perto o modelo da ordem jurídico-constitucional portuguesa - v.g. Lei nº14/97, da Guiné Bissau) o que seria invocável não era o Código Penal, nem um qualquer Decreto-Lei - seria uma Lei do Parlamento Nacional sobre a matéria da responsabilidade penal dos titulares de cargos políticos.

No caso português, estaria em causa a Lei sobre os Crimes de Responsabilidade dos Titulares de Cargos Políticos (artigo 23º) e não o Código Penal (que é também, como em Timor Leste, e na generalidade dos demais casos, aprovado por Decreto-Lei). E esse é, de facto, o caminho inevitável para escapar à solução inconstitucional de incluir os titulares de cargos políticos no conceito de funcionário e de estes verem o seu estatuto definido, por essa via, em desrespeito pela reserva absoluta do Parlamento.

Refira-se que, no âmbito do direito que está a ser utilizado como referência de comparação (Lei nº 34/87, de 16 de Julho) a pena correspondente prevista é – havendo lesão de interesses patrimoniais, sublinhe-se - prisão até cinco anos e multa de 50 a 150 dias (em agravamento da solução à altura prevista no Código Penal de 1982 , que era de prisão até quatro anos e multa de 30 a 90 dias - artigo 427º).

Ora, no caso presente, os Juízes de primeira instância procedem a um ilegítimo uso “a dobrar” da condição de membro de órgão de soberania, que aliás os faz ,assim, por duas vezes incorrer na aplicação indevida de normas inconstitucionais.
Primeiro, recorrem a ela para obter a “equiparação” a funcionário ( norma inconstitucional como se viu), equiparação sem a qual a “participação económica em negócio” não poderia, sequer em hipótese, existir, pois que se trata – recorde- se – de um” crime de funcionário”.

A seguir, pretendem usá-la para levar a cabo o agravamento previsto no artigo 301º do CP, onde se prevê que as penas cominadas no Título em causa sejam, no caso de tais agentes, “elevadas de um terço no seu limite máximo” (norma igualmente inconstitucional por violação também da reserva absoluta).

Para lá do vício técnico-jurídico desta operação, essa via conduz-nos, na substância, a um resultado que é não só chocante no contraste com a referência legislativa externa que inspirou a adopção pelo direito timorense da figura da “participação económica”, como, em absoluto, desproporcionado (o que se tornaria evidente na simples comparação com a moldura penal de crimes mais graves, a que seria aqui deslocado proceder).

Assim, em Portugal, o regime específico aplicável aos titulares de cargos políticos prevê, para a mesma figura, um limite máximo de cinco anos para a pena de prisão (pena que é, após a revisão de 2007, sempre susceptível de suspensão) – mas isso teria sempre como pressuposto necessário que fossem lesados os interesses patrimoniais do Estado (o que no caso presente, comprovadamente, não acontece).

Não ocorrendo isso (ou seja, mesmo “sem os lesar”) , em situação menos distante, mas não equivalente, à do presente processo, à face da lei portuguesa, a punibilidade dependeria de ter sido recebida vantagem patrimonial por efeito do acto praticado e a pena prevista seria, tratando- se como aqui de titular de cargo político, multa de 50 a 150 dias (artigo 23º,nº 2 da Lei nº 34/87,de 16 de Julho).

Nos direitos que importaram a solução do Código Penal português autonomizando, como no modelo, a hipótese de recebimento de vantagem independentemente de haver lesão patrimonial (“ainda que sem lesar”, é a redacção mantida), a pena prevista é multa ou prisão , tendo esta limites máximos como três anos (Cabo Verde) ou seis meses (Macau).

Pois no caso de Timor Leste, segundo a lógica do acórdão que aqui nos surge, se os prejuízos alegados tivessem sido comprovados, esse limite seria de quinze anos de prisão (artigo 299,nº 2) - e, ainda por cima “elevado de um terço” (artigo 301º). Num caso, como o presente, em que o Tribunal se viu forçado a concluir “que não se provou que das condutas resultaram prejuízos” (p.92), o limite máximo seria, segundo o Tribunal, de oito anos (artigo 299º,nº1), e identicamente “elevado de um terço” (artigo 301º ).

Trata-se de uma assimetria incompreensível em direitos que, nesta matéria, assumem a mesma matriz, e que resulta não só da lei como – em relevante medida - de erros de interpretação (sobretudo, erros de “aproximação interpretativa” entre vários sistemas) e aplicação dessa lei e , em primeiro lugar, da ofensa ao princípio do Estado de Direito Democrático, ao arrepio do disposto no artigo 2º,nº 2 e artigo 6º b) da Constituição, de que decorre uma fundamental exigência de proporcionalidade.

Na posição assumida pelo Tribunal, uma desconsideração, reprovável, das questões de constitucionalidade, oportunamente arguidas, induz, além do mais, um agravamento desmesurado das soluções do CP respeitantes à “participação económica em negócio ”. E estas são já de si , como se referiu, conflituantes com o princípio da proporcionalidade, ínsito no princípio do Estado de Direito Democrático (artigo 1º). A perspectiva comparada fornece índices práticos muito expressivos para se aquilatar da ofensa ao princípio, pelo menos na aplicação concreta que é aqui intentada.

Acresce que, na ponderação que aqui cabe fazer , tendo em vista integrar o que poderia denominar-se a “ herança jurídico-penal lusófona” no quadro jurídico global, não pode deixar de ser tomado em consideração o facto do tipo legal em causa ( em rigor só deparável nalguns direitos influenciados pelo Código Penal português de 1982) não se encontrar contemplado, como já se disse, na Convenção da ONU contra a Corrupção.

XII- - Uma evidência de parcialidade

Não pode omitir-se que, sob a aparência técnica de uma citação jurisprudencial, os Juízes de primeira instância incluem na parte final do acórdão uma nota, não apenas imprópria e contraditória como assumindo efeito infamante - em termos que nem mesmo as deficiências anteriores permitiriam prever.

Cita-se uma decisão, respeitante a outro caso, reproduzindo-se a frase: “a conduta do arguido revela um dolo intenso e uma firme persistência no seu desígnio de apropriar-se de quantias monetárias que sabia pertencerem ao Estado Timorense.

(…) As quantias de que se apropriou não são elevadas” (p.96 e 97). E diz-se de seguida, a revelar a plenitude do efeito, que “todas estas considerações podem ser transpostas para o caso presente”.

Não é admissível, frente aos critérios da lógica, que um Tribunal possa incluir esta nota de efeito infamante no mesmo acórdão em que conclui (i) não se ter provado que da conduta das ex-governantes resultaram prejuízos patrimoniais para o Estado e (ii) julgou improcedente, na totalidade, o pedido de indemnização.

A lógica e o direito ao bom nome justificam que as ex-governantes esperem ver suprimida esta referência chocante. A própria decisão dos juízes que subscrevem essa frase é peremptória no sentido de que não se “apropriaram” de quaisquer “quantias monetárias do Estado Timorense” - nem muito nem pouco “elevadas”. Doutro modo, teriam no mínimo de as restituir.

Até aqui encontramos amiúde no caso Juízes aparentemente convictos de que se encontravam provados factos que o não estavam. Nesta frase final, ultrapassando tudo, encontramos Juízes que, para efeitos de punição, se mostram convencidos de factos que eles próprios tiveram de reconhecer que não estavam provados.

Aparentemente absurda e abusiva, a referência em causa tem, contudo, na economia do presente acórdão, uma função eloquente.

Se os outros marcadores que foram sendo utilizados não bastassem, ela constituiria a revelação final da parcialidade com que os Juízes de primeira instância encararam o caso das ex-governantes. Fosse o que fosse o que tivessem de decidir – e no caso tiveram de decidir expressamente pela ausência de prejuízos patrimoniais - no seu espírito as ex-governantes seriam sempre tratadas como pessoas que se tivessem apropriado de quantias monetárias do Estado Timorense.

Há aqui uma manifestação, não apenas de uma escrita infeliz – o que, dado o conteúdo em causa, já seria muito gravoso - mas da infracção ao princípio de um “tribunal parcial”, em violação do artigo 10º da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Juizes que revelam , do modo indicado, como os factos provados lhe são indiferentes para o efeito de construírem e fundarem os seus juízos de censura penal privam os visados do “julgamento justo” a que todos têm direito.

É clássico referir-se a dificuldade da prova de uma postura de parcialidade por parte dos julgadores, em virtude da sua elevada capacidade técnica e discursiva acabar por desempenhar, em regra, uma eficaz função dissimulatória ( sendo mesmo comum ler-se : “bias is hard to prove since judges are usually careful to display apparent fairness in their comments”). Neste caso, com pressupostos diferentes, a forma estigmatizante como as ex-governantes são tratadas, contra os factos provados, como tendo-se “apropriado de quantias monetárias” do Estado, é uma revelação incontornável dessa postura - que nenhuma genuina instância de recurso poderá avalizar.

XIII - Conclusões

1. O processo em curso concluiu-se, em primeira instância, com um esclarecimento satisfatório de vários pontos que são relevantes, do ponto de vista jurídico, comunitário e institucional:

a) As ex-governantes foram absolvidas do crime de “administração danosa” de que vinham acusadas;

b) Não se comprovaram prejuízos patrimoniais para o Estado resultantes de actos das ex-governantes; prejuízos de outra qualquer natureza também não foram provados em julgamento;

c) O pedido de indemnização de USD$ 811.040,00 deduzido contra as ex- governantes, foi julgado , na sua totalidade, improcedente;
d) Foi também considerada improcedente a acusação de que teria havido no caso desdobramento fraudulento de contrato.

2. Face a este desmentido que o julgamento trouxe às teses acusatórias em aspectos tão significativos, os Juízes da primeira instância não extraíram as consequências que os critérios da lógica e da experiência, os princípios de direito universalmente reconhecidos e a lei imporiam.

3. Sem fundamento objectivo para isso bastante, julgaram procedente a acusação de que as ex-governantes teriam praticado, em co-autoria, um crime, já não de “administração danosa”, mas de “participação económica em negócio”.

4. Com completa independência em relação a toda a argumentação de natureza técnica que seja feita valer em recurso, que se sabe ter sido interposto, a observação do julgamento permite detectar na decisão vícios e falhas graves, muito em particular nas opções que foram assumidas pelo Tribunal para salvaguardar o segmento da acusação que foi retido (“participação económica em negócio”).

5. À vista do que se passou no julgamento, oferece-se à observação uma deficiente e errónea valoração da prova produzida que, por vezes com a ajuda de inferências insustentáveis, desfigura e nalguns casos contraria abertamente a realidade.

6. Numa insuperável contradição, os Juízes da primeira instância, ao identificarem o direito a aplicar, explicitam que o tipo de crime em causa implica que as condutas lesem os interesses patrimoniais do Estado (p.89 do acórdão); ora, tendo reconhecido que no caso isso não se comprovara no julgamento, mantêm a conclusão de que as ex-governantes teriam, mesmo assim, cometido esse crime.

7. A pura lógica bastaria para concluir em sentido contrário e decretar a absolvição, tal como se fez, e bem, quanto à acusação de “administração danosa”.

8. Os Juízes da primeira instância, numa postura quase negacionista em relação ao direito positivo, nunca quiseram enfrentar e tomar em devida consideração a circunstância de, na ordem jurídica timorense, ao contrário doutras, não ser ilícita a contratação com o Estado por parte uma empresa a que, por si ou por familiar, esteja ligado um membro do governo.

9. No âmbito da contratação aqui em causa, respeitante a aquisição de equipamento hospitalar (camas), os Juízes de primeira instância revelaram não diferenciar apropriadamente o processo de acesso à Reserva de Contingência e o processo de aprovisionamento, tal como resultam do detalhado regime legal vigente.

10. Sendo a prova clara no sentido de que a ex-governante com ligação familiar ao titular da empresa ( a ex-Ministra da Finanças) não praticou actos no processo de aprovisionamento conducente à aquisição do equipamento , nomeadamente na escolha do procedimento e empresa fornecedora, os Juízes de primeira instância intentaram aplicar ao caso o quadro conceptual de uma “co-autoria”.

11. Para isso, co-erigiram em “autor” da “participação económica”, de par com ela, alguém com intervenção comprovada no processo de aprovisionamento (a ex-Vice-Ministra da Saúde) sem que se tivesse provado em audiência (i) qualquer facto de que, em relação a ela, pudesse decorrer motivação para essa prática (ii) ou sequer que lhe pertencessem, no referido processo, quer o contacto inicial e a abonação do equipamento da empresa fornecedora quer a autoria das principais decisões tomadas.

12. Como elemento do enquadramento visado, os Juízes de primeira instância, em inferência abusiva, aceitaram atribuir um específico conteúdo de planeamento de concertação (conluio) a conversas havidas em almoços, sempre ocorridos na companhia e proximidade de outros convivas que, prestando depoimento em julgamento, declararam nada ter ouvido ou saber de tais conteúdos. Em suma: sem nenhuma prova sobre o conteúdo de tais conversas atribuíram-lhe o valor do estabelecimento de um “acordo prévio”.

13. O uso dessa inferência abusiva – e só dela - para dar por provado um suposto “acordo prévio” entre as “co-autoras” representa um passo inaceitável em termos de prova, contrário aos princípios universalmente reconhecidos da presunção da inocência e “in dubio pro reo” (artigo 11º da Declaração dos Direitos do Homem e artigo 34º da Constituição)

14. Dá-se o caso de, no concreto, a inferência abusiva encerrar a demonstração cronológica da sua própria inaplicabilidade ao fim pretendido.

15. É que o suposto “acordo prévio “ atribuído às ex-governantes é reportado pelo acórdão a eventos ocorridos em datas em que há muito estaria em marcha a alegada “acção comum”, isto é, quando o primeiro contrato já se consumara e, quanto ao segundo, já se encontrava tomada a opção de repetir o recurso ao anterior fornecedor.

16. Fica por entender como é possível incorrer no vício grosseiro de “situar” um suposto “acordo prévio” - que é não só exigível no caso, como é mesmo citada doutrina em reforço dessa exigência - em fase tão adiantada da suposta acção conjunta e dar tal requisito por preenchido.

17. Apesar de terem comparecido em audiência vários ex-Presidentes da República, ex-Primeiros-Ministros, membros e ex-membros do Governo e do Parlamento Nacional, os Juízes de primeira instância, desconsiderando a matéria dos seus depoimentos, adoptaram uma leitura deformada e errónea do processo de decisão no âmbito do Governo, desinserindo-o do contexto político em que se desencadeou e equiparando-o a um processo burocrático iniciado e concluído por funcionários.

18. Tal possibilitou falhas notórias na forma como foram atribuídas responsabilidades e papéis entre membros do governo e gerou, ainda, uma anómala dificuldade de compreensão da dinâmica da reacção governativa, quer a carências históricas insuficientemente atendidas, e reconhecidamente “importantes”, quer, muito em particular, a um surto de dengue de graves consequências, comprovadamente verificadas.

19. Assim, num caso em que as decisões relevantes são da autoria do ex-Primeiro- Ministro Xanana Gusmão, que as assumiu, e a empresa fornecedora escolhida fora antes visitada pelo ao tempo Ministro da Saúde Nelson Martins - que ele próprio forneceu as suas referências e abonou o seu material como sendo ajustado às necessidades - não se reputa sustentável a atribuição da responsabilidade respeitante a esse aprovisionamento e essa escolha à Vice-Ministra.

20. Faltou, a estruturar a visão, um compreensão mínima dos papéis governativos(Primeiro-Ministro/Ministro/Vice-Ministro) e da sua articulação em termos de responsabilidade - o que teria bastado para obviar a essa conclusão chocante.

21. Ocorre uma deturpação paralela quando, face a uma ocorrência na esfera da saúde geradora de dificuldades e carências acrescidas - e que também representou uma conjuntura crítica do ponto de vista da imagem e responsabilidade do governo - se pretende sancionar penalmente a invocação de “urgência”, ou de “imprescindibilidade” subjacente a três decisões do ex-PM (e uma outra adoptada por membro do governo dele dependente no desenvolvimento daquelas, em virtude de delegação de competência entretanto ocorrida).

22. Isso é tanto mais inaceitável e até paradoxal quanto se destina a colocar os efeitos desse juízo reprovador, não sobre os ombros do autor investido na mais elevada responsabilidade – que aliás a assumiu plenamente em audiência - mas sobre o de outros membros do governo dele dependentes.

23. Não é curial nem conforme a uma interpretação judiciosa da separação de poderes própria de um Estado de Direito Democrático que, face a decisões e contextos de marcada incidência político-governativa e político-parlamentar, o Tribunal, em contexto de decisão condenatória de ex-governantes, emita juízos como: “ as camas não responderam a necessidades urgentes tal como invocado” ou “a ausência de orçamento deve-se à inércia política dos responsáveis”.

24. O Tribunal mostrou-se impreparado para examinar, como se lhe impunha, a questão da inconstitucionalidade de normas que aplicou, constantes de Decreto-Lei, que permitem tratar membros do Governo como funcionários para efeitos penais e, em razão disso mesmo, agravar as respectivas penas (artigos 301º, nº1, 302º, nº1, a) e 299 º do CP). A forma inadequada como reagiu ao facto dessa questão ter sido suscitada pela defesa, e bem assim a omissão do ponto no acórdão, é merecedora de censura.

25. Da Constituição resulta que o estatuto dos membros do governo e dos outros titulares de órgãos de Estado integra a competência exclusiva do Parlamento (artigo 95º, nº 2, k) - e aí se tem de incluir a matéria dos crimes de responsabilidade dos membros do governo. Daí que, por serem inconstitucionais, tais normas não possam ser aplicadas pelos Tribunais, a quem compete assegurar o cumprimento do disposto no artigo 2º, nº2 da Constituição.

26. É revelador de inaceitável desproporcionalidade que, no espaço penal lusófono que tem por referente comum o modelo do Código Penal português de 1982, o mesmo tipo de conduta, não causadora de prejuízos patrimoniais ao Estado, com o mesmo tipo de agente, possa incorrer em multa no ordenamento português (Lei nº 34/87, de 16 de Julho, artigo 23º) e no âmbito dum processo como este sejam cominadas penas de prisão como as decretadas (7 e 4 anos de prisão efectiva ).

27. Não obstante tão chocante imparidade deva interpelar também o legislador timorense, ao ser pretendida a aplicação judicial de solução com tais contornos ao presente caso, com base em aproximações interpretativas erróneas, fere-se um princípio fundamental de proporcionalidade, ínsito no princípio do Estado de Direito Democrático (artigo 1º da Constituição)

28. O Tribunal omitiu indevidamento o exame das inconstitucionalidades referidas, não obstante ter sido confrontado com algumas delas durante o julgamento, infringindo os preceitos constitucionais referidos e esquecendo o artigo 2º, nº2 da Constituição que estabelece que “as leis e o demais actos do Estado só são válidos se forem conformes com a Constituição”, que aliás define Timor Leste como um Estado de Direito democrático (artigo 1º).

29. Na parte em que procura salvaguardar, sem fundamento bastante, a acusação respeitante a “participação económica em negócio”, o acórdão padece de contradições, obscuridades e insuficiências técnicas que o tornam inidóneo para legitimar - o que implica fundamentar lógica e perceptivelmente - uma condenação penal, para mais com a gravidade da presente.

30. Com isso, incumpre também extensivamente exigências específicas constantes da lei processual timorense (organização dos quesitos, matéria a incluir neles, separação de factos e direito, exigências em sede de fundamentação, etc) em termos que dificilmente escaparão ao escrutínio do Tribunal de Recurso, já com persuasiva jurisprudência nesse domínio.

31. Os Juízes de primeira instância, ao exararem no final do acórdão (p.96) que se aplica por inteiro às ex-governantes uma afirmação em que se fala de “apropriação de quantias monetárias do Estado Timorense”, mesmo depois de terem reconhecido que não se provou que tenham causado prejuízos patrimoniais ao Estado, assumem, em sentido convergente com anteriores opções, uma gravosa manifestação de parcialidade, em violação da garantia prevista no artigo 10º da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

32. Em razão de alguns dos dados e argumentos anteriormente expostos, é expectável que o Tribunal de Recurso venha a censurar seriamente o acórdão em causa. Se assim não ocorresse - o que, repete-se, não se perspectiva - a justiça timorense, num caso com a projecção do presente, ficaria afectada, na sua reputação, por uma decisão que não observa padrões de qualidade, normas legais e da Constituição e princípios de direito de reconhecimento universal.

XIV - Recomendações

1. Deverá ser ponderada a introdução no direito processual timorense de uma fase, facultativa, de instrução, que, frente a uma acusação infundamentada, ou insuficientemente fundamentada, garanta a existência de uma triagem prévia, já sob a responsabilidade de um juiz (ou mais do que um, como acontece nalguns países).

2. Recomenda-se que sejam significativamente incrementadas as condições locais para lidar com as questões de direito constitucional, fulcrais num Estado de Direito Democrático, seja num óptica de capacitação institucional seja numa óptica de apoio reforçado à formação judicial nesse domínio. Para lá duma solução institucional, a prazo, mais satisfatória e efectiva do que a actual (inexistência de especialização e de Tribunal Constitucional), importa desde já apoiar, pelas formas adequadas, programas que preparem a magistratura para um exercício mais capaz dessa dimensão da sua actividade nos Tribunais - que é a fulcral para que a Constituição possa desempenhar o seu papel.

3. Um forte investimento da República Democrática de Timor Leste nos processos de recrutamento, selecção e formação, inicial e contínua, dos magistrados e dos juízes muito em particular, é crucial para a garantia dum nível adequado de concretização do desígnio constitucional do Estado de direito, nomeadamente em matéria de direitos, liberdades e garantias e também de princípios universalmente aplicáveis, atento o movimento de internacionalização em curso.

4. Para além desse maior apoio público à actualização e aprofundamento da formação de juízes e procuradores, torna-se necessário melhorar as condições de escrutínio e de confiança do público na actividade judicial. Assim, numa jurisdição em que é superior ao habitual a diversidade - incluindo geográfica, linguística e sistémica - das proveniências e formações académicas e profissionais, permitir a acessibilidade do público, através da Internet, aos percursos académico e profissional dos juízes constituiria um elemento dessa promoção de confiança e escrutínio. Tal faria redobrado sentido no âmbito de uma solução mais abrangente, que envolvesse todos os titulares de órgãos do Estado com poderes de decisão com idêntica relevância, e, se necessário, se dotasse da base legislativa adequada.

5. As soluções do direito penal timorense conexas com a matéria a contemplar numa lei da responsabilidade penal dos titulares deverão ser reponderadas, tendo em conta - além do alinhamento com a Convenção da ONU contra a Corrupção como critério fundamental - uma abordagem racionalizadora das desproporções, assimetrias e disparidades injustificadas em relação a outros direitos penais lusófonos, nomeadamente àquele em que directamente se inspiram e a que são frequentemente feitas aproximações interpretativas equivocadas de efeitos perversos.

6. Considerando a matéria versada no julgamento em causa, justifica-se a reponderação da solução actualmente decorrente da Lei nº 7/2007, de 25 de Julho, à luz dos riscos daí advenientes, nomeadamente para a reputação do Estado Democrático e para o próprio prestígio da actividade política, comprovadamente decorrentes da sua vigência. Recomenda-se, assim, que em relação a cônjuges de membros do governo passe a vigorar proibição idêntica à que vigora relativamente aos titulares de órgãos de soberania, vedando-se a contratação das empresas em causa com o Estado e prevendo-se um regime de sancionamento claro e efectivo.

7. A responsabilidade criminal dos titulares de cargos políticos deve ser objecto de diploma próprio, a ser aprovado pelo Parlamento Nacional, pondo termo às inconstitucionalidades de vária natureza que hoje existem, e que neste caso também se evidenciam, e oferecendo assim aos interessados e à comunidade uma perspectiva clara, segura e incontroversa, que hoje não existe.

8. Recomenda-se a aprovação de uma disciplina jurídica aplicável a conflitos de interesses, que seja vinculativa para os membros do governo, e que tenha em conta a natureza específica da sua actividade. É injustificado prolongar a ausência de regulamentação e com isso dar argumentos a quem, indevidamente, pretenda proceder à aplicação a esses agentes do regime que foi previsto para a função pública.

9. É de ponderar a ideia de um “código de conduta do governo”, à semelhança do que também se tem verificado noutros países, concebido como instrumento deauto-regulação de natureza ética, que permita parametrizar comportamentos e situações que, mesmo quando não atinjam relevo jurídico, são susceptíveis de reprovação ética e social e de prejudicar a confiança nas instituições. Trata-se de um instrumento privilegiado para pormenorizar critérios e soluções apropriadas frente a situações conflitos de interesses, sem com isso cair na opção inadequada de tratar os membros do governo como funcionários, ou então de permitir que lhes sejam aplicadas, por indefensável via interpretativa, regras imaginadas e redigidas a pensar em funcionários.

10. Recomenda-se que o registo de interesses - a que já se refere hoje artigo 7º da Lei nº 7/2007 – seja devidamente operacionalizado, superando-se os obstáculos que até agora tem encontrado, por forma a torná-lo um instrumento útil para o controlo de situações de conflitos de interesses - nomeadamente em relação a membros do governo. Deverão ser abarcados, de forma exaustiva, os aspectos que em regra são considerados, no direito comparado, em tais instrumentos (sociedades, vínculos familiares, actividades comerciais, contas bancárias, ligações a entidades estrangeiras, apoios recebidos, etc). Não se mostrando exequível a solução de ligação ao Supremo Tribunal de Justiça, hoje inexistente, o registo dos membros do Governo, como em vários países acontece, poderia ser sediado no Parlamento, aproveitando-se a recente criação legislativa desse instrumento para os Deputados.

Fevereiro de 2017

XV - NOTAS

1. Apesar das diligências efectuadas, não foi possível, no caso presente, aceder ao currículo académico e profissional dos Juízes. Tal teria sido relevante para a compreensão e valoração adequada de vários aspectos do julgamento e da decisão proferida . Essa circunstância é reflectida nas Recomendações, n. 4

2. No direito timorense actual não há no processo penal a fase de instrução, quer obrigatória quer facultativa. Este ponto é abordado nas Recomendações, n.1.

3. O crime “administração danosa” entrou no Código Penal português, não por via do projecto originário de 1966 (donde não constava), mas por influência ulterior do direito da extinta República Democrática Alemã (RDA). Esta influência foi acolhida em Portugal no final dos anos setenta, em reformulação do projecto de Código Penal que então teve lugar, numa fase, ultrapassada, em que “planificação “ e “empresas públicas” tinham presença marcante no modelo consagrado na versão originária da Constituição portuguesa (1976), entretanto nesse domínio revista (1989).

4. “Participação económica em negócio “constitui, a um tempo, tipo legal e denominação que só em 1982, com o conteúdo que para aqui releva, deram entrada no direito penal português. Impõe o rigor histórico que se diga que isso ocorreu com base num projecto datado de 1966, ainda encomendado pelo governo de Salazar e apreciado em primeira mão - incluindo neste preciso ponto - sob o governo de Marcelo Caetano (“Actas da Comissão Revisora”, 1973, artº 455º).

Também no caso português essa solução, no segmento aqui relevante, foi importada: é o artº 324º do código penal do fascismo italiano (1930), hoje revogado ( Lege 26 Aprile 1990), que constitui a sua inspiração remota.

Poucas ordens jurídicas europeias consagraram a figura e menos ainda (se alguma) a denominação “participação económica em negócio”. A lei alemã foca historicamente uma realidade distinta quando, através da figura da “participação em prestações excessivas devidas a funcionário”, encara o fenómeno dito da “overcharging of fees”. A Áustria e a Espanha são consensualmente incluídas pelos autores no grosso dos países que a ignoraram.

Fora da Europa, e na onda doutrinária do Código Penal de Mussolini, surge quase só, a segui-lo ainda, o Código Penal brasileiro de 1940 com um crime de funcionário” (“patrocinar, directa ou indirectamente, interesse privado perante a Administração Pública, valendo-se da condição de funcionário público” –artº 321º ) que é aí punível, ainda hoje, com um a três meses de prisão (em certas circunstâncias, até ao limite de um ano de prisão).

Pode dizer-se que, à escala global, foi praticamente só nalguns dos Estados e regiões onde o português é língua oficial que a incorporação tardia operada em 1982 acabou por ser replicada, em momentos ulteriores, com pequenas adaptações, por via da influência exercida pelo direito penal português ( na linguagem dos comparatistas, verificaram-se aí “transplantes”, com pequenas adaptações, do Código Penal de 1982 ). Foi o que se passou, através desse mecanismo, na Região Administrativa Especial de Macau e nalguns dos PALOPs, embora com grandes diferenças na moldura penal em relação a Timor Leste.

Não por acaso, a figura não encontrou lugar no processo de universalização que as soluções penais no domínio da luta contra a corrupção têm conhecido. Na hoje referencial Convenção da ONU sobre a Corrupção (2003), ratificada por Timor Leste, vários tipos criminais são expressamente contemplados e mesmo “globalizados” com a específica promoção, ou mesmo constituição da obrigação internacional da sua previsão legal.

Tal acontece com crimes bem identificados como a corrupção, peculato, apropriação ilícita, desvio de bens, tráfico de influência, em relação aos quais os Estados ficam obrigados à sua adopção legislativa (“shall adopt”, em vez de, como noutras soluções, “shall consider adopting” ou “may adopt”). Mas isso não se verifica em relação à “participação económica em negócio”, em relação à qual não é estabelecido, em qualquer gradação, um “dever de classificação penal” (como até acontece, por exemplo, em determinados termos, com o “enriquecimento ilícito”, embora com salvaguarda dos princípios constitucionais de cada Estado ). Mais do que isso, não lhe é feita alusão – o que é matéria que não pode passar sem reflexão, no quadro da actual tendência de harmonização legislativa à escala global.

Em suma, o direito internacional global acerca da corrupção optou – numa escolha consagrada já neste século e prefiguradora de toda a evolução em perspectiva - por não incluir a “participação económica em negócio” nos tipos criminais “previstos de adopção obrigatória”, concentrando-se antes noutras figuras, essas sim de generalizada projeção em ordens jurídicas de diferente natureza e origem.

Nesse sentido vai também a “Declaração do ministros da Justiça da CPLP” sobre a luta contra a corrupção (2013), que retoma e reitera obrigações de criminalização nesse domínio, listando os tipos criminais abrangidos por essa obrigação, mas sem neles incluir (ou a qualquer título mencionar) a figura da “participação económica em negócio”, o mesmo se passando com o tipo penal análogo existente com outro nome (“advocacia administrativa”) no direito brasileiro. Tudo se passa como se, em sede de política de justiça, a visão comum já tivesse como grelha a Convenção da ONU e não particularismos penais originários dos anos trinta , que as vicissitudes da actividade legislativa têm permitido reproduzir.

5. Uma vez que o próprio Tribunal tomou a iniciativa de invocar a autoridade de autores portugueses - e o faz até no contexto de um julgamento conduzido em tétum – impõe-se aqui uma explicitação adicional.

A compreensão do tipo penal que vimos ser adoptada e explicitada pelo Tribunal (p.89) aponta para uma justificada “ convergência interpretativa” com o crime que é previsto no artigo 377, n.1, do Código Penal português, que lhe serviu de referência (e que é aí punido com prisão até cinco anos, pressupondo efectiva lesão de interesses patrimoniais), já que o previsto no nº 2 desse artigo, que admite a ausência dessa lesão (“ainda que sem os lesar”), é aí, de forma bem mais benévola, apenas punido “com pena de prisão até 6 meses ou pena de multa até 60 dias” (após a revisão de 1995, antes apenas multa).

Não seria de facto imaginável que uma denominada “ aproximação interpretativa” pudesse ser estabelecida - tratando-se de ordens jurídico-criminais da mesma matriz - entre um crime (sem a exigência de “lesão patrimonial”) a que, numa delas, a sanção pode ir a 6 meses (Portugal) e na outra a 8 anos, ou mesmo a 15 anos de prisão (Timor Leste , n. 1 e 2 do artigo 299º do CP ). Isto remete para uma importante dimensão do trabalho judicial numa “ pequena jurisdição” , que será sempre profundamente influenciada, e mesmo afectada, pela “legal education” originária de cada juiz . Trata-se de matéria que aqui não foi possível escrutinar , mas que se afigura poder ajudar a explicar alguns dos enviesamentos presentes na forma como foi construída a decisão de primeira instância.

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